sexta-feira, 15 de março de 2013

Profecia e História à Luz do Apocalipse


 Tema 08
PROFECIA E HISTÓRIA À LUZ
DO APOCALIPSE
José Carlos Ramos
março de 2013

            O Apocalipse, em harmonia com o teor geral do Novo Testamento, revela que a pessoa de Jesus não pode ser desvinculada de Seu ensino e vice-versa. Há uma unidade entre ambos. Ele profere a Palavra de Deus (1:2) e é a Palavra de Deus (19:13). Ele Se revela na revelação das “coisas que em breve devem acontecer” (1:1), e em resultado, Deus e Seu propósito são revelados.
            Ao percebemos o fato de que o Revelador divino incorpora a revelação e Se revela nela e por ela, estamos aptos para descobrir mais extensamente o significado dos eventos proféticos relatados no Apocalipse. Como Carpenter ressalta, “embora os altos e baixos da História humana estejam incluídos na revelação, esta é a revelação de uma pessoa viva. Não se trata do fluxo descolorido e sem vida de circunstâncias, mas a vida de homens e nações vista à luz dAquele que é a luz de cada homem, e a vida de toda a História; e assim percebemos que somente uma pessoa viva pode ser o Alfa e Ômega, o ponto inicial da criação e seu descanso final. O testemunho de Jesus é o espírito desta profecia e de todas as outras.” (Cit. em R. Tuck, The Preacher’s Complete Homiletic Commentary, 31:411).

Projeção Divina na História

            O Apocalipse confirma que a profecia abarca todo o trato de Deus com o pecado. A mensagem deste livro, em sua formulação e cumprimento, projeta, através de Jesus, a pessoa de Deus e Sua obra. Este fato é observado já nas primeiras linhas. Deus o Pai é referido em 1:4 e 8, e esplende-Se na pessoa de Deus o Filho em 1:5 a 7, e 1:17 e 18. Então, a divina realidade, primeiramente ligada ao Pai, em seguida revelada no Filho, é projetada na mensagem profética em 1:19, e ganha, através dela, nossa própria esfera restrita ao tempo e espaço: “Escreve, pois, as coisas que viste, e as que são, e as que hão de acontecer depois destas.”
            Isso pode ser assim representado:
  
DEUS O PAI
DEUS O FILHO
PROFECIA

1:4                                                1:8

EU SOU
o Alfa
e o Ômega

AQUELE QUE

é
era
há de vir

o Todo Poderoso
  
1:5-7                                                            1:17, 18
                                                                                                                                                              
EU SOU
o Primeiro
e o Último

AQUELE QUE

nos ama                                                           vive
nos libertou                                              esteve morto vem com as nuvens        está vivo para sempre

tem as chaves

1:19

-
-
-

AS COISAS QUE

viste
são
hão de acontecer

-


            Não se apresentam meras abstrações teológicas sobre Deus, divorciadas de qualquer senso da ação divina. É verdade que expressões como Eu sou o Alfa e o Ômega, Eu sou o Deus Todo-Poderoso, Eu sou Aquele que é, que era e que há de vir, etc., denotam a infinita transcendência de Deus. Mas o Deus transcendente, o Deus que está infinitamente acima e além da Criação, é também o Deus imanente, o Deus que se aproxima da Criação, originando-a, preservando-a e redimindo-a.
            Ao dizer que Deus é, era, e há de vir, o Apocalipse evoca o nome pelo qual Deus se identificou a Moisés na sarça ardente – Eu sou o que sou – logo após a promessa de que estaria com ele na difícil tarefa de libertar Israel (Êx 3:12, 14). Com efeito, o inefável nome YAHWEH pressupõe o Deus que escolhe Israel como Seu povo e entra em concerto com ele para que a promessa feita a Abraão seja cumprida. É o Deus que resgata Israel, que o conduz pelo deserto, que o coloca finalmente em Canaã e garante-lhe todas as bênçãos.
            No contexto infinitamente maior do Apocalipse, a expressão ressalta a presença eterna de Deus e Sua atividade restauradora. Esta, iniciada no momento da queda do homem no pecado e desdobrada no curso dos séculos, será concluída com o desaparecimento do último vestígio do mal e o estabelecimento da Nova Terra (Ap 20-22). Daí o emprego da forma verbal é (a eterna presença salvífica), era (o ato salvífico no princípio), e há de vir (o ato salvífico no futuro erradicando o pecado). Deus é Aquele que se aproxima da Criação perdida para trazê-la de volta à sua condição original. Desde que este processo abarca o passado, o presente e o futuro, Ele Se apresenta como sendo o Alfa e o Ômega (a primeira e a última letra do alfabeto grego), e o Deus Todo-Poderoso. Reivindicando Sua soberania absoluta, Ele afirma ter o inteiro curso da História nas mãos, e o conduz rumo ao clímax final quando Seu plano será plenamente cumprido.
            Esta obra divina de restauração é totalmente fundamentada no evento do Calvário e da ressurreição. A encarnação é o clímax da imanência divina, e através dela Deus é revelado. Por esta razão, uma adequada projeção da realidade do Pai é estabelecida (ver o quadro acima), já que a atuação invisível de Deus no curso da História, cumprindo o Seu propósito salvífico, se torna visível agora na manifestação do Filho. A eterna presença de Deus (é) deve ser vista no fato de que Jesus vive e nos ama; Sua atuação salvífica desde que o pecado começou neste mundo (era) deve ser vista no fato de que Jesus morreu (em 13:8 Ele é o Cordeiro “morto desde a fundação do mundo”!) para nos libertar e restaurar; o ato consumativo de Deus, erradicando definitivamente o pecado e estabelecendo o Seu reino (há de vir) deve ser visto no fato de que Jesus vem com as nuvens, clara evidência de que Ele está vivo pelos séculos dos séculos e que é o Rei messiânico; finalmente, Deus como plenamente capaz de cumprir o Seu propósito (o Deus Todo-Poderoso) deve ser visto no fato de Jesus, em virtude de Seu triunfo, trazer nas mãos as chaves da morte e do inferno. Jesus possui estas chaves porque por Sua ressurreição Ele evidenciou o triunfo da cruz sobre a morte. Como ressurreto e glorificado Senhor Ele reivindica ser o Todo Poderoso: “Toda a autoridade Me foi dada no céu e na terra.” (Mt 28:18). Não há como não ser concretizado o Seu propósito.
            Levando-se em conta que essa projeção da pessoa e da obra do Pai na pessoa e na obra do Filho forma o conteúdo da revelação profética, João recebeu a incumbência de relatar as coisas que viste, e as que são, e as que hão de acontecer depois destas. Esta tríplice divisão do material profético deve corresponder, em sua aplicação, à tríplice divisão do tempo durante o qual o plano de Deus é cumprido: passado, presente e futuro. Devemos notar, todavia, que aqui, em harmonia com a perspectiva do escritor, que é exatamente a nossa, uma ordem normal da transcorrência do tempo é estabelecida, enquanto que, no que respeita a Deus, Sua presença eterna ocupa posição de prioridade.

A Centralidade da Cruz

            Temos em Jesus, com especial aplicação à Sua morte, ressurreição e glorificação, a evidência de que, desde a entrada do pecado até sua erradicação, Deus nunca cessa de agir pela salvação do homem. Cada coisa relacionada com o Calvário é fundamental para o plano divino, e este fato está implícito no Apocalipse.
            A figura de Jesus como Cordeiro é predominante no livro. A estrutura do antigo santuário de Israel, cujo ministério se fundamentava num ciclo de sacrifícios que apontavam para a cruz, se faz presente no livro, demarcando os lances da atividade divina de salvação. Ênfase apropriada é dada ao fato de que Jesus é o Cordeiro imolado para a redenção humana. Em 5:5 e 9 é isto que Lhe outorga dignidade e condição de transmitir a revelação. Em outras palavras, a revelação não é somente centralizada na cruz; é dependente dela. Realmente o evento do Calvário impregna todo o curso da salvação.
            O capítulo 12 é o centro da estrutura literária do Apocalipse, sendo os versos 7 a 12 o núcleo do capítulo, isto é, o centro do centro do livro. Os versos 7 a 9 aludem ao combate de Miguel e Seus anjos contra o dragão, isto é, o diabo, e seus anjos, destacando o triunfo de Miguel (o qual, segundo podemos inferir de outros textos bíblicos, identifica a pessoa de Jesus à frente da controvérsia de Deus com Satanás).
            O contexto histórico imediato desta batalha não é, como pareceria à primeira vista, a sequência de eventos no Céu que caracterizaram a rebelião de Lúcifer antes de sua queda, mas compreende o inteiro ministério terrestre de Jesus culminado com Sua morte e ressurreição, quando Seu triunfo foi alcançado e confirmado. Considerando que este triunfo pertence também à Igreja, o verso 11 afirma que os verdadeiros crentes vencem o dragão “pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho.” Portanto, em sua estrutura literária a cruz é central no Apocalipse.
            Voltando ao capítulo 1, as palavras “estive morto” (v. 18) nos lembram que a Cruz é um fato histórico consumado. Mas o Apocalipse confirma também que a virtude salvífica da cruz transcende o tempo e o espaço. Jesus é o Cordeiro que foi morto “desde a fundação do mundo” (13:8), tanto quanto o Cordeiro como tendo “sido morto” (5:8). Assim, o passado e o futuro são envolvidos, pela cruz, no eterno presente salvífico de Deus. A ação divina, operando em cada tempo, converge-se para a cruz como centro propulsor, e promana dela para o alcance de seus propósitos.
            A centralidade da Cruz é ainda vista na declaração dos versos 5 e 6 do capítulo 1: Jesus “pelo Seu sangue nos libertou de nossos pecados, e nos constituiu reino e sacerdotes para Seu Deus e Pai.” Os dois verbos empregados aqui, libertar e constituir, visualizam o efeito final do plano da redenção. O primeiro faz alusão ao resgate, o preço pago para libertar o homem do cativeiro do pecado. O segundo é empregado um grande número de vezes no Novo Testamento com diferentes significados. Compreende especialmente a ideia de fazer alguma coisa, criar, cumprir um desígnio, um propósito. Aponta aqui para a restauração daquilo que se perdeu pelo pecado. Libertado do pecado, o homem tem diante de si o caminho para voltar à sua condição original e ser uma nova criatura.
            Não obstante, este efeito final da redenção é visto como tendo sido já alcançado na cruz. De fato, o homem estará para sempre livre do pecado e restaurado plenamente à perfeição edênica somente na consumação final. Durante o milênio, por exemplo, os redimidos serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com Ele (20:6b). Mas Ele já os tem feito reino e sacerdotes. Tais privilégios futuros são vistos como presentes realidades, pois as formas verbais libertou e constituiu apontam para fatos efetivamente estabelecidos e consumados. Isto é possível porque na transcendência da Cruz a concretização do plano da redenção ocorreu.
            Por esta razão, Jesus Cristo, que penetrou na História quatro mil anos após a queda, pôde afirmar ser “o primeiro e o último” (1:17b), “o Alfa e o Ômega,” “o princípio e o fim” (22:13). A História não tem sentido a não ser pela Cruz. Sem ela não haveria a História. Mas em virtude dela o plano de Deus se torna exequível. Como diz o Dr. Lenski, para o cumprimento deste plano Jesus se posiciona em ambas as extremidades da História “envolvendo, governando, controlando o todo.” (The Interpretation of St. John’s Revelation, 73).

Conclusão

                “A visão cristã da História, que vem de Patmos, é, antes de tudo, a visão de Cristo e de Sua invisível, todavia infalível e irresistível ação na História.” (H. M. Féret, O Apocalipse de São João ― Visão Cristã da História, 62).
            Uma correta abordagem dos livros de Daniel e Apocalipse requer que eles sejam considerados antes de tudo como a revelação de Jesus. A profecia não deve ser estudada com o único objetivo de se constatar o seu cumprimento na História. Mais do que isto deve ser buscado.
Naturalmente, tem o seu lugar de importância a consciência de que tais e tais eventos históricos cumpriram tais e tais previsões proféticas. Mas se tal consciência estiver desvinculada do essencial, daquilo que é decisivo para o desenvolvimento da experiência cristã, será ela de valor efetivo?
Se através do estudo da profecia não se obtém uma visão mais profunda do Filho de Deus e do que Ele significa para o cumprimento do plano divino, visão esta que resulte num aumento de fé, num mais claro discernimento de Jesus e do que Ele significa para nós, pouco benefício, se algum, foi auferido.
            Estudem-se as profecias. Contemplem-se “as coisas que em breve hão de acontecer”. Mas, acima de tudo, contemple-se, nelas e em seu cumprimento, Aquele que as revelou, a ponto de se obter uma visão nova, mais profunda, autêntica e inspiradora de “Jesus Cristo”, o Salvador e Senhor de todos.

2 comentários:

  1. Mano!
    Perfeito!
    A cada dia que estudo mais um pouco chego à conclusão, que o estudo em si mesmo é apenas um referencial de conhecimento teórico. No entanto creio fielmente que meu dever ao buscar tais informações teóricas elas sejam transformadas em fé abundante pela atividade regeneradora do Espírito Santo, o único ingrediente capaz de transformar a teoria em prática na reconstrução e reedificação do caráter humano caído pela operação mortífera do pecado e sua natureza destruidora.

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  2. Pastor, que privilégio ler seus textos. E saber que um dia estive assentado aos "seus pés" sendo seu aluno. Que Deus continue te abençoando.
    Jorge Leite

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