Tema 15
A Precisão histórica do
livro de Daniel - parte 1
Dr. José Carlos Ramos
Junho de 2013
O
livro bíblico de Daniel toma emprestado seu título de seu protagonista
principal, o profeta Daniel. O nome significa Deus é meu juiz, e sugere um de seus temas preponderantes.
O
título não indica necessariamente a autoria, já que alguns livros do Antigo
Testamento foram certamente escritos não pela pessoa cujo nome serve de título,
como é o caso de Rute, Ester e Jó. Quanto a Daniel, porém, tem sido a posição
tradicional tanto de judeus como de cristãos que o livro foi escrito pela
própria pessoa que ostenta esse nome, sendo a época de produção o 6º século
a.C., e o local a Mesopotâmia, com especial referência a Babilônia. Tanto os eventos
históricos ali narrados quanto as visões atribuídas ao profeta são consideradas
genuínas.
Salvo
pelas argumentações em contrário da pena de Porfírio, néo-platonista
anti-cristão do 3º século, e do judeu Uriel Acosta no início do século 18, essa
posição só passou a ser seriamente questionada de uns 200 anos para cá. Hoje o
pensamento teológico liberal, com base nos postulados da alta-crítica, afirma que o livro foi escrito por um judeu piedoso,
anônimo, por volta de 165 a.C., com o propósito de incentivar a resistência por
parte dos compatriotas à tirania do rei sírio Antíoco Epifânio (175-164 a.C.) em
sua tentativa de helenizar a Judéia. O referido escritor teria optado pelo nome
Daniel para o protagonista de seu livro, com base em Ez 14:14 e 28:3, onde
alguém com mais ou menos o mesmo nome é referido como justo e sábio.
A
exemplo de Porfírio, os teólogos que sustentam esta opinião negam o elemento
preditivo da profecia de Daniel, e atribuem à obra o caráter de vaticinia ex eventu, um registro de
fatos históricos numa feição profética. Segundo a hipótese liberal, as únicas
predições reais do livro estariam em 8:25 e 11:40-45, e teriam a ver com o
futuro de Antíoco, principalmente o local e a maneira de sua morte, previsões
que não se cumpriram. A obra, portanto, deveria ser rotulada de fraude piedosa através de uma ficção
literária. Igualmente a idoneidade dos relatos históricos aí registrados é
colocada em dúvida.
Os
liberais consideram a posição tradicional insustentável quando confrontada com
as evidências internas e externas do livro. Muito bem, comecemos, então, a ver
se isto, de fato, procede. De início, analisaremos dois detalhes históricos,
supostamente inexatos: o começo do reinado de Nabucodosor, e o sentido restrito
do termo caldeu empregado por Daniel. Tomemo-los em consideração a vermos se
realmente são inexatos.
O Começo do
Reinado de Nabucodonosor
Segundo
os críticos o livro, em sua abertura, diverge de uma informação prestada por
outro escritor sagrado. A discrepância é suposta quando se faz uma comparação
de Dn 1:1 com Jr 25:1 e 42:2. Naturalmente a crítica considera o livro de
Jeremias muito mais confiável em termos de narrativa histórica.
Duas
dificuldades são pretendidas com base nesta comparação:
(1)
Segundo Jeremias o 1º ano de Nabucodonosor, rei de Babilônia, corresponde ao 4°
de Jeoaquim, rei dos judeus. Logo, no 3º ano de Jeoaquim, Nabucodonosor não
poderia ser rei, como o autor de Daniel afirma.
(2)
A batalha de Carquemis, na qual Nabucodonosor derrotou Neco II do Egito,
ocorreu, segundo Jeremias, no 4º ano de Jeoaquim. O texto deste profeta dá a
entender que Jerusalém não havia sido perturbada por Nabucodonosor antes desta
batalha. Os críticos, então, pensam que o autor de Daniel se equivocou ao afirmar
que, no 3º ano de Jeoaquim, Nabucodonosor invadiu Jerusalém. Imaginam que, fosse o autor do
livro um contemporâneo de Jeremias, esses equívocos não seriam cometidos.
Na
realidade, os equívocos não foram mesmo cometidos. As dificuldades acima
desaparecem quando se leva em consideração que dois sistemas de computação
estão aqui envolvidos: o sistema
babilônico, empregado por Daniel, e o sistema
palestino, empregado por Jeremias. O primeiro identificava como ano de ascensão aquele em que o rei
começava a reinar, passando o ano seguinte a ser considerado o primeiro. O
outro sistema ignorava o ano de ascensão e colocava o rei, já no início do
reinado, em seu primeiro ano. Esse fato foi satisfatoriamente comprovado pelas
pesquisas feitas por Edwin R. Thiele, cujos resultados aparecem em seu livro The Misterious Numbers of the Hebrew Kings.
Uma
comparação dos dois sistemas pode ser assim estabelecida:
ANO a.C.
|
REI JEOAQUIM
Sist.
Babilônico Sist.
Palestino
|
REI NABUCODONOSOR
Sist. Babilônico Sist. Palestino
|
||
608
|
Ascensão
|
1º ano
|
-
|
-
|
607
|
1º ano
|
2º ano
|
-
|
-
|
606
|
2º ano
|
3º ano
|
-
|
-
|
605
|
3º ano (Dn 1:1)
|
4º ano (Jr 25:1;
42:2)
|
Ascensão
|
1º ano
|
604
|
4º ano
|
5º ano
|
1º ano
|
2º ano
|
603
|
5° ano
|
6º ano
|
2º ano (Dn 2:1)
|
3º ano
|
Isso
explica também porque no 2º ano de Nabucodonozor Daniel e seus companheiros já
eram contados entre os sábios de Babilônia (Dn 2), quando o escrutínio do rei,
para os classificar assim, ocorreu depois de 3 anos de preparo (1:5, 18, 20),
cálculo inclusivo. Estes 3 anos são: 605, 604, 603.
Em
vista do exposto não há porque imaginar que o evento de Dn 1:1 e 2 tenha
ocorrido antes da batalha de Carquemis. Flávio Josefo cita o historiador e
sacerdote babilônico Beroso, segundo o qual a presença de Nabucodonosor foi
sentida na Palestina no começo do verão de 605 a.C., ao sufocar, no Egito, uma
rebelião que envolveu a Fenícia e a Síria. Beroso fala dos cativos, entre eles
judeus, que Nabucodonosor deixou sob os cuidados de seus generais, ao apressar
seu retorno a Babilônia para ocupar o trono de seu recém-falecido pai, Nabopolassar.
Levando-se em conta que Daniel relatou esse fato, com muita probabilidade, no
primeiro ano de Ciro (Dn 1:21), 536 a.C., não é de se estranhar que haja antecipado a
Nabucodonosor o título de rei no evento de 1:1.
Assim
considerada, esta não é absolutamente uma dificuldade para os que sustentam a
posição tradicional quanto à autoria e época de produção do livro de Daniel, e
sim para os que defendem o ponto de vista liberal. Como é possível que um
judeu, vivendo no 2º século a.C. na Judéia, ignorou o sistema palestino de
computação e utilizou o sistema babilônico, em voga no 6º século na
Mesopotâmia? Essa dificuldade se volta com maior ímpeto contra aqueles próprios
que a advogam quando nos lembramos que o escritor de Daniel estava familiarizado
com o conteúdo de Jr 25, que fala dos 70 anos do cativeiro judeu em Babilônia
(ver Dn 9:2). Não é muito estranho que ele tenha ignorado a designação do “4º
ano de Jeoaquim” feita por Jeremias?
É
muito mais natural, portanto, supor que, vivendo no 6º século a.C. na
Mesopotâmia, o autor não ignorou essa designação, tendo apenas optado pelo
sistema vigente naquela região onde viveu e escreveu seu livro.
O Sentido
Restrito do Termo Caldeu
Este
termo é empregado em Daniel com um sentido mais restrito, isto é, em referência
a uma classe especial de sábios em Babilônia. É suposto que esse fato evidencia
uma ocasião posterior para a produção do livro já que nos textos cuneiformes do
6º século a.C., a exemplo do restante do Antigo Testamento, o termo não é
empregado a não ser com uma conotação étnica significando a raça oriunda da
Caldéia.
Antes
de tudo, devemos notar que Daniel emprega o termo caldeu também com o sentido étnico em 5:30, 9:1 e possivelmente 1:4. Com o
sentido mais restrito o termo é empregado em 2:2, 4, 5, 10, 4:7, 5:7, 11, e
possivelmente 3:8.
Tudo
o que a crítica pode aqui reivindicar em seu favor é o testemunho do silêncio,
pois é verdade que as inscrições cuneiformes do período néo-babilônico, até
agora conhecidas, não registram o emprego do termo com o sentido restrito. Mas
o silêncio não é nem tão eloquente nem tão duradouro. É uma impropriedade
cobrar das inscrições uma catalogação completa dos sábios de Babilônia. Por
outro lado, as informações de Heródoto, historiador grego do 5º século a.C.,
dão conta em seu Guerras Pérsicas que
os caldeus exerciam uma função sacerdotal desde pelo menos o início do reinado
de Ciro (559 a.D.). Se isso ocorria quando os persas dominavam, por que não
ocorreria quando os próprios caldeus dominavam?
É
bom lembrar que a Caldéia inicialmente foi um distrito ao sul de Babilônia, mas
nos tempos de Nabucodonosor designava toda ela. Considerando que em 625 a.C.
Nabopolassar subiu ao trono de Babilônia e deu início aos 87 anos da dinastia
caldaica, não é difícil supor que um grupo de caldeus passasse a ocupar uma
posição de destaque nos assuntos governamentais. Aliás, eles são referidos com
deferência já nos anais assírios desde os tempos do rei assírio Assurnasirpal II (9º século
a.C.). Os registros reais de outro
rei assírio, Adade-Nirari III que governou cem anos mais tarde, mencionam
pelo nome vários caldeus que eram chefes preeminentes entre seus vassalos.
Portanto, o grupo agora dominante, era possuidor de uma tradição político-religiosa. Ao termo caldeu, então,
Daniel aplicou um sentido restrito, voltado às atividades que o grupo
desempenhava.
No próximo tema analisaremos outros detalhes históricos do livro de Daniel que a alta-crítica
considera serem inexatos, para observarmos que, a exemplo destes que acabamos
de ver, são autênticos e, portanto, dignos de crédito.